segunda-feira, 6 de novembro de 2023

FNTSUAS lança nota crítica sobre Reordenamento do Programa Criança Feliz no SUAS

 

Ao Conselho Nacional de Assistência Social
À Secretaria Nacional de Assistência Social

ANÁLISE DA PROPOSTA DE REORDENAMENTO DO PROGRAMA CRIANÇA FELIZ NO SUAS

Com base na apresentação da última reunião da Comissão Intergestores Tripartite (em 06 de junho último), este documento tem como objetivo apresentar a análise do Fórum Nacional de Trabalhadores/as do SUAS sobre o reordenamento do Programa Criança Feliz.

O Programa Criança Feliz (PCF) foi criado em 2016, após um movimento internacional de Pacto pela Primeira Infância, proposto pela Frente Parlamentar da Primeira Infância, com apoio da Rede Nacional Primeira Infância. Em 2014 aconteceram audiências públicas para sua construção. Por fim, o Marco Legal pela Primeira Infância foi regulamentado pela Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016, e em 24 de novembro de 2016, a Resolução CNAS nº 19 instituiu o Programa Primeira Infância no SUAS.

Em 2021, a Resolução CNAS nº 29 aprovou recomendações de aprimoramento ao Programa Primeira Infância no SUAS que possui 2 pilares fundamentais: as visitas domiciliares e a integração das políticas públicas envolvidas com o tema. Ainda em 2021, foram incluídas ao público do Programa as crianças até 6 anos que perderam pelo menos um de seus responsáveis familiares durante o período de emergência sanitária decorrente da SARS- CoV-II (Covid-19).

Dos 5570 municípios brasileiros, 3020 possuem adesão ativa ao PCF. Contudo, sabe-se que nem todos atingiram as metas propostas pelas dificuldades postas.

A proposta de reordenamento apresentada na Comissão Intergestora Tripartite tem como primeira medida, a atualização da Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, incluindo gestantes e crianças no público e como uma das modalidades do Serviço de Proteção Social Básica no Domicílio, que passará a ser intitulado: “Serviço de Proteção Social Básica e Cuidados no domicílio a gestantes, crianças, idosos/as e pessoas com deficiência”. Assim, o serviço seria estratificado por públicos, tal como ocorre com o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Diante disso, a metodologia das visitas domiciliares seria adequada ao já previsto no serviço, mas com maior articulação às demais ofertas do SUAS.

Pela Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, o Serviço de Proteção Social Básica no domicílio para pessoas com deficiência e idosas tem por finalidade:

[…] a prevenção de agravos que possam provocar o rompimento de vínculos familiares e sociais dos/as usuários/as. Visa a garantia de direitos, o desenvolvimento de mecanismos para a inclusão social, a equiparação de oportunidades e a participação e o desenvolvimento da autonomia das pessoas com deficiência e pessoas idosas, a partir de suas necessidades e potencialidades individuais e sociais, prevenindo situações de risco, a exclusão e o isolamento. O serviço deve contribuir com a promoção do acesso […] aos serviços de convivência e fortalecimento de vínculos e a toda a rede socioassistencial, aos serviços de outras políticas públicas […]. (CNAS, 2014).

De acordo com as orientações técnicas, nas características deste Serviço a proteção é indissociável do cuidado:

O cuidado é mais que uma relação pautada na atenção e na acolhida, requer dedicação, presença na rotina, preocupação e, especialmente, corresponsabilidade e zelo com o bem-estar do outro. O cuidado revela modos de vida particulares. Particularidades que se refletem na dinâmica das famílias, considerando sua cultura. (CNAS, 2014).

A câmara temática que debateu essa pauta incluiu, ainda, a atualização do público prioritário, incluindo imigrantes e refugiados, beneficiários do BPC, pessoas em situação de rua e outros, além de alteração da periodicidade das visitas, passando a ser quinzenais. Essa alteração na frequência dá-se pela constatação da inexistência ou baixa supervisão do trabalho dos/as visitadores/as, falta de dedicação do planejamento do trabalho e compreensão de que a diminuição da frequência não impactará na eficiência.

A composição da equipe técnica incluiria um técnico de referência do CRAS, o que não fica nítido se este/a técnico/a seria específico/a para o Serviço de PSB no domicílio, ou seria o/a técnico/a do PAIF, além da inclusão do/a cuidador/a social (com as atribuições do SUAS) como visitador/a. A Resolução CNAS nº 9/2014 traz em seu artigo 4º as funções do/a cuidador/a social:

a) desenvolver atividades de cuidados básicos essenciais para a vida diária e instrumentais de autonomia e participação social dos/as usuários/as, a partir de diferentes formas e metodologias, contemplando as dimensões individuais e coletivas;
b) desenvolver atividades para o acolhimento, proteção integral e promoção da autonomia e autoestima dos/as usuários/as;
c) atuar na recepção dos/as usuários/as possibilitando uma ambiência acolhedora;
d) identificar as necessidades e demandas dos/as usuários/as;
e) apoiar os/as usuários/as no planejamento e organização de sua rotina diária;
f) apoiar e monitorar os cuidados com a moradia, como organização e limpeza do ambiente e preparação dos alimentos;
g) apoiar e monitorar os/as usuários/as nas atividades de higiene, organização, alimentação e lazer;
h) apoiar e acompanhar os/as usuários/as em atividades externas;
i) desenvolver atividades recreativas e lúdicas;
j) potencializar a convivência familiar e comunitária;
k) estabelecer e, ou, potencializar vínculos entre os/as usuários/as, profissionais e familiares;
l) apoiar na orientação, informação, encaminhamentos e acesso a serviços, programas, projetos, benefícios, transferência de renda, ao mundo do trabalho por meio de articulação com políticas afetas ao trabalho e ao emprego, dentre outras políticas públicas, contribuindo para o usufruto de direitos sociais;
m) contribuir para a melhoria da atenção prestada aos membros das famílias em situação de dependência;
n) apoiar no fortalecimento da proteção mútua entre os membros das famílias;
o) contribuir para o reconhecimento de direitos e o desenvolvimento integral do grupo familiar;
p) apoiar famílias que possuem, dentre os seus membros, indivíduos que necessitam de cuidados, por meio da promoção de espaços coletivos de escuta e troca de vivência familiar;
q) participar das reuniões de equipe para o planejamento das atividades, avaliação de processos, fluxos de trabalho e resultado. (CNAS, 2011).

A Norma Operacional Básica do SUAS (CNAS, 2006) explicita a profissão de cuidadores/as sociais nas Instituições de Longa Permanência para Idosos, mas na composição das equipes de referências dos CRAS, deixa lacuna sobre qual a profissão de nível médio comporá a equipe, o que pode corroborar com a fragilização desses/as trabalhadores/as e de sua própria atuação profissional visto que não há definição objetiva. O/A educador/a social, por exemplo, desenvolve atividades socioeducativas e de socialização visando à atenção, defesa e garantia de direitos e proteção aos indivíduos e famílias […] que contribuam com o fortalecimento da função protetiva da família” (CNAS, 2011).

Outras propostas de reordenamento incluem: a revisão das atribuições dos entes federados; a qualificação da equipe técnica da rede socioassistencial para o atendimento à primeira infância, com conteúdos padronizados; a elaboração de protocolos e estratégias intersetoriais de atenção à Primeira Infância e subsidiar a participação do SUAS nos Comitês Intersetoriais previstos no âmbito do Marco Legal da Primeira Infância.

Além disso, o financiamento deverá ser previsto atendendo ao artigo 6º-E da Lei Orgânica de Assistência Social(1993). O referido artigo traz que: “As proteções sociais básica e especial serão ofertadas pela rede socioassistencial, de forma integrada, diretamente pelos entes públicos e/ou pelas entidades e organizações de assistência social vinculadas ao Suas, respeitadas as especificidades de cada ação”. (BRASIL, 1993).

Ainda, o Art. 6o-E, incluído pela Lei nª 12435, de 2011, coloca que “os recursos do cofinanciamento do Suas, destinados à execução das ações continuadas de assistência social, poderão ser aplicados no pagamento dos/as profissionais que integrarem as equipes de referência, responsáveis pela organização e oferta daquelas ações”, conforme percentual apresentado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e aprovado pelo CNAS.

Desde 2020 o programa tem sistema próprio (E-PCF), e é apontada a necessidade de sua qualificação, inserindo informações qualitativas do acompanhamento. Desde essa época, o sistema não estava integrado às demais ofertas do SUAS, o que trouxe a perda de informações e gera dados imprecisos, visto que é acessado apenas pelas equipes do PCF.

Sobre o Protocolo de oferta de cuidados à Primeira Infância, incluiria a articulação entre Ministério da Saúde, Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social e Ministério dos Direitos Humanos. Já na reunião da CIT foi apontada a necessidade de inclusão do Ministério da Educação e Ministério da Justiça, valorizando e reforçando a necessidade de articulação intersetorial para a efetiva proteção à infância no país.

Outro debate importante a ser tratado refere-se ao trabalho realizado com crianças em situação de acolhimento institucional, sendo necessário aprofundar a discussão e estabelecer metodologias adequadas, uma vez que este público possui características específicas em relação às complexidades dos casos.

Ainda foi problematizada a articulação do novo Serviço de Proteção Social Básica e Cuidados à Gestantes e Crianças junto ao Serviço de Proteção e Atendimento Integral às Famílias (PAIF) e o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) para crianças de 0 a 6 anos. Na oportunidade, os gestores apontaram a dificuldade de execução do SCFV para este público por diversos fatores. Neste aspecto, salienta-se que é inegável que o PCF trouxe demandas para o PAIF e para o PAEFI em CREAS.

Diante de toda a apresentação aqui exposta, cabe registrar as seguintes problematizações:

Financiamento: O programa Criança Feliz, ao ser formalmente incorporado ao conjunto de serviços tipificados no SUAS precisa ter sua estrutura de financiamento discutida e pactuada, a fim de que a responsabilidade dos entes federados seja posta especificamente baseada em suas efetivas necessidades de custeio.

Atualização da tipificação: considerando não apenas a proposta de reordenamento do Programa Criança Feliz, como também a realidade da vivência da execução do SUAS nos municípios, assim como a já conhecida precarização dos equipamentos da assistência social e dos vínculos das relações de trabalho das/os profissionais do SUAS, além da realidade posta pela elevação das emergências sanitárias, cenários de calamidades de várias origens(epidêmicas, climáticas, dentre outras), esta atualização precisa ser realizada de forma orgânica, considerando a participação das/os trabalhadoras/es, contemplando todas as proteções e serviços, de modo a respeitar a matricialidade familiar como base da reavaliação dos programas e serviços.

Além de tudo, as equipes mínimas não correspondem mais às necessidades dos serviços, sendo necessária reformulação da NOB/SUAS/RH e principalmente no trato ao desenvolvimento infantil alinhado a perspectiva sociofamiliar e sociocomunitária, que requer profissionais que possuam conhecimento e habilidades específicas no trato das questões pertinentes à 1ª infância, tais como a proteção e garantia de direitos.

Adequação da metodologia das visitas: as visitas semanais demandam grandes recursos por parte da gestão (veículos, combustível, motorista) para acesso às famílias nas regiões urbanas e principalmente concorrem com atividades de agentes comunitários de saúde, com as equipes de atenção básica em Saúde(NASFs/E-multi), o que demanda um redesenho das atividades e atribuições das equipes setoriais. Nas regiões rurais e ribeirinhas, somam-se aos demais recursos, como casos de lanchas, diesel, piloto, além dos materiais pedagógicos utilizados pela equipe.

Neste aspecto, uma das grandes dificuldades de atingir as metas de crianças inseridas no programa, além das questões logísticas e de recursos materiais, tem sido a segurança pública, pois muitos territórios são considerados perigosos e dominados por facções do tráfico dentre outros reflexos das questões de ordem social (realidades presentes por exemplo em várias regiões, nas zonas metropolitanas das capitais). Por isso, não só a periodicidade como as metas estabelecidas para cada território precisam considerar as fragilidades e limitações de acesso das equipes do SUAS, sem prejuízos para o financiamento, garantindo a execução dos serviços.

A inclusão da palavra “cuidado” no nome do serviço tem qual denotação de significado? Até então a linguagem do SUAS atribui às seguranças socioassistenciais a garantia da proteção social; o cuidado é muito mais atrelado às famílias e vizinhanças no cotidiano, respeitando suas culturas. Sugerimos que façamos uma articulação com a Política de Cuidado que está sendo gestada no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome para discutirmos conceitos e estratégias articuladas;

Atualização do público e equipes – a atualização do público, incluindo crianças de 0 a 6 anos, elevará o nível de dificuldade de execução, considerando as dificuldades da oferta de serviço de convivência e fortalecimento de vínculos para esse público, bem como nas ofertas da rede socioassistencial.

As concentrações dos serviços nos equipamentos de assistência social trazem várias dificuldades operacionais, especialmente quando consideramos a extensão dos serviços às crianças que vivem em zonas rurais e ribeirinhas, em situação de rua, grupos tradicionais e específicos e crianças em situação de acolhimento institucional.

Não ficou entendível quanto à organização da equipe sendo inserida dentro da proteção social básica, no entanto não podemos ignorar a precariedade que as equipes de PAIF já vivenciam, e impor a responsabilidade por mais um programa que necessita de uma articulação efetiva com as demais políticas como as de saúde, educação e o sistema de garantia de direitos pode ser receita para o caos dentro dos CRAS, principalmente daqueles que são coordenados por figuras políticas locais que não possuem formação superior adequada e experiência com a Política de Assistência Social.

Portanto, a vinculação da equipe de referência nos CRAS impactará na recomposição das equipes de referência previstas pela NOB-RH SUAS? A profissão de cuidador/a social seria a mais adequada para os/as visitadores/as considerando a precarização do trabalho vivenciada por esta categoria (especialmente pelos baixos salários)? Qual(quais) o/a(os/as) profissional(is) será(serão) responsável(responsáveis) por sua supervisão, uma vez que não podemos deixar de registrar que as atribuições conferidas ao/à cuidador/a social, podem envolver ações higienistas, com cunho discriminatório e não emancipador na construção de autonomia e independência das famílias e/ou pessoas acompanhadas.

A Resolução nº 17/2011 que define os/as profissionais de nível superior do SUAS, dentre eles/as terapeutas ocupacionais, e outros/as que possuem habilidades profissionais para analisar e desenvolver projetos para estimular/desenvolver/facilitar o desenvolvimento humano e a participação social em vários contextos como no domicílio, nos equipamentos escolares, na vida comunitária. Nesse sentido, entendemos a importância de ampliarmos a composição das equipes de referência e mesmo a delimitação mais objetiva de competências e funções dos/as profissionais envolvidos/as na atenção ao público do programa. Além disso, não traria uma confusão de papéis diante do/a cuidador/a formal e informal das crianças, idosos e PCDs?;

Qualificar equipes técnicas – Priorização do fortalecimento e financiamento da Política de Educação Permanente para estados e municípios, como estratégia de qualificação dos serviços e programas da rede socioassistencial, bem como da rede intersetorial. O financiamento por programas não atende às necessidades permanentes de capacitação e formação das equipes dos serviços, considerando a instabilidade dos vínculos trabalhistas e alta rotatividade das equipes do SUAS. A implementação da PNEP/SUAS precisa ser compromisso das gestões municipais e estaduais e estendido também para a rede complementar dos serviços ofertados pela rede de organizações parceiras.

Sistema E-PCF: a manutenção de vários sistemas que não se integram ou compartilham informações se torna um desafio para a vigilância socioassistencial e um monitoramento efetivo da execução dos serviços e suas metas. O prontuário eletrônico do SUAS necessita de atualização, para ser capaz de responder às demandas de todos os serviços e programas do sistema, se tornando uma base mais eficaz de informações sobre os territórios e suas demandas. A qualificação de um sistema próprio é a melhor alternativa? Tratando-se de um serviço do SUAS, não seria o caso de inclusão no prontuário eletrônico do SUAS?

Queremos um SUAS fortalecido na perspectiva da proteção social, integrando as demais políticas de Seguridade Social! Por isso damos publicidade à essa nota crítica possibilitando ampliar os debates e diálogos em pauta.

Fórum Nacional de Trabalhadores/as do SUAS
Grupo de Trabalho Serviços do SUAS
Agosto de 2023

Referências:

BRASIL. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1993. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742.htm. Acesso em: 19 jun. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CNAS). Resolução nº 9, de 15 de abril de 2014. Ratifica e reconhece as ocupações e as áreas de ocupações profissionais de ensino médio e fundamental do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, em consonância com a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS – NOBRH/SUAS. Brasília, DF: 2014. Disponível em: http://blog.mds.gov.br/redesuas/resolucao-no-9-de-15-de-abril-de-2014/. Acesso em: 19 jun. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CNAS). Resolução nº 269, de 13 de dezembro de 2006. Aprova a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social – NOB-RH/SUAS. Brasília, DF: 2006. Disponível em: https://www.social.go.gov.br/files/arquivos-migrados/54ea65997b6c44c14aa59c27bc4946a1.pdf. Acesso em: 19 jun. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CNAS). Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf. Acesso em: 19 jun. 2023.

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